segunda-feira, 5 de março de 2012

Capítulo VIII Razão contra Sandice


Já o leitor compreendeu que era a razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:

La maison est à moi, c´est à vous d´en sortir.*

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar.É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
-Não, senhora - replicou a Razão - estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente dos sótãos à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
-Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
-Que mistério?
-De dois - emendou a Sandice-; o da vida e o da morte; peço-lhe, só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.
-Hás de ser sempre a mesma coisa... Sempre a mesma coisa... Sempre a mesma coisa...
E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...

*"A casa é minha, vós é que deveis sair."


Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis

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